Um passeio (de mascára) pelas lives A elasticidade da técnica em tempos de COVID-19

Um passeio (de mascára) pelas lives A elasticidade da técnica em tempos de COVID-19

 

“Eu não sei o que sou

nem o que sinto

Não sei o que procuro

nem o que tenho encontrado

Não sei se acredito

nessa paisagem que meus olhos mostram

Não sei se acredito

no fim de qualquer fragmento ou batalha

Não sei se desisti

nem se pretendo lutar

Não sei a distância

entre o céu e o inferno

Não entendo o bem e o mal

não penso mais nisso”

 

Heloiza Abdalla (“Ana”, Ana Flor da água da terra, 2016)

 

Chegamos ao final do primeiro ciclo de lives do projeto: A elasticidade da técnica em tempos de COVID-19. Para quem pôde acompanhar os encontros, fica a certeza que se abriu um infinito de possibilidades para pensar as mudanças na clínica psicanalítica que a pandemia trouxe. Ao longo desse percurso, algo permanecia em meus pensamentos.

O traumatismo do momento atual. A cada novo desafio que um colega trazia, ficava mais evidente para mim, a gravidade do momento vivido. Eu sentia necessidade de fazer algo disso, de lidar com os desafios trazidos e com os afetos evocados, para evitar o trauma no meu ser analista. Vou trazer alguns desses desafios que escutei nos encontros.

A começar pela necessidade de aplicar a elasticidade da técnica levando em consideração as necessidades atuais do paciente. Ao mesmo tempo, não perder o centro de gravidade, as idéias e os valores acerca do dispositivo analítico. Como lidar com a ausência dos corpos? A questão do enquadre interno do analista. O desafio de lidar com uma maior horizontalidade vivida com o paciente. A privacidade que não existe no campo virtual. A adaptação necessária no aparelho perceptivo. O desafio de se abrir de outras formas que não as usuais, para o universo do outro. Como lidar com o cansaço? Como manter uma percepção empática do outro sem a presença corporal? A questão de manter a fé, uma convicção no trabalho. O desafio de criar um espaço possível para a dor existir, para dar um destino a esta dor. O luto a ser vivido por perdas como a do consultório e tantas outras. A questão de lidar com uma realidade que impõe um funcionamento melancólico. Como manejar um novo ritmo e andamento da sessão. O desafio de lidar com os diferentes silêncios do analista e do analisando.

Tudo isso, falando apenas dos desafios profissionais, relativos à clínica. Ainda vimos alguns desafios pessoais, tais como: lidar com o desconhecido que a situação traz, com as perdas pessoais, com o contato mais próximo da morte, com a incerteza e com a finitude. Foi falado da importância da análise do analista nesse momento, para se manter vivo psiquicamente. É a higiene do analista, proposta como algo essencial, por Ferenczi.

Além dos desafios, muitos trouxeram algo importante de retomar, que são as novas possibilidades que se abriram com essas mudanças. O contato pode ser mais íntimo, agora vamos à casa do paciente. Quanto a horizontalidade citada, ela remete a um rebaixamento da autoridade do analista (ainda que alguma verticalidade seja inerente ao processo), o que pode ser benéfico para uma análise, ecoou Ferenczi.

Mas voltando aos desafios e o traumatismo envolvido, isso me fez retomar o texto, Análise de crianças em adultos, de 1931, quando Ferenczi disse: “O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento … isso é, tudo o que torna o traumatismo patogênico.”

As lives e outros espaços de trocas são importantes dispositivos que ajudam a não desmentir o trauma e a reconhecer o sofrimento envolvido. Falar sobre as implicações que as mudanças causam, é colocar os afetos em movimento, é dar nome ao sofrimento. Reconhecer os desafios, é ter a possibilidade de criar formas para lidar com eles, é poder construir um sentido para a experiência. Escutar outras vivências, faz parte desse processo de elaboração e criação, é na troca com o outro que o sujeito encontra a sua forma de dizer o que sente, para poder criar saídas saudáveis aos impasses vividos.

O destino do traumático, será no pós pandemia. Agora, pode-se continuar criando sentidos para as experiências vividas e assim ter meios para lá na frente, dar um destino ao trauma. Fazer e participar das lives e de outros espaços de trocas, é aumentar a possibilidade desse destino ser mais a partir do nosso desejo, e menos a partir de nossas defesas disponíveis.

 

 

Escrito por Paulo Von Schwerin Pimentel

membro do GBPSF

 

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