Muitos psicanalistas se inquietam com a ascensão da direita no mundo. No Brasil, as últimas eleições presidenciais parecem nos ter pego de surpresa e nos vimos diante da necessidade de repensar a relação entre a Psicanálise e a política. Movimentos interessantes surgiram desse susto, e um número considerável de psicanalistas atenderam ao desafio de compreender o papel da Psicanálise em nossa sociedade. Frequentemente, a articulação que se busca é com a dita macropolítica, ou política partidária, representativa. Outras vezes, promovem-se alianças profícuas com movimentos sociais. Ou ainda, é a própria clínica que exige ser repensada, por exemplo, a partir das militâncias que recentemente se fortaleceram, como aquelas envolvendo os coletivos negros, feministas, indígenas, LGBTQ+ etc. É inquestionável a importância destes debates. Gostaríamos, no entanto, de chamar a atenção para uma quarta frente de luta política para a Psicanálise, desta vez já bastante antiga, mas que nem sempre é suficientemente lembrada: as relações de poder inerentes à própria prática da psicanálise, presentes nas instituições e na transferência, e que perpassam a clínica de cada um(a) de nós.
Esta quarta frente costuma suscitar uma reação defensiva dos psicanalistas, que eventualmente se sentem atacados ao ver revelada uma dimensão microfascista interna à Psicanálise. Mais surpreendente, contudo, seria se ela inexistisse, visto que nenhum movimento, instituição, saber ou prática está desprovido de seu microfascismo próprio, que precisa ser incessantemente combatido. Portanto, não se trata de um privilégio nem de um demérito da Psicanálise. De todo modo, é urgente que possamos sair de uma posição defensiva para fazer frente a este perigo, cada vez mais ameaçador. Caso contrário, o risco é que a Psicanálise se torne cúmplice dos microfascismos.
Pensando com Deleuze e Guattari, podemos dizer que os microfascismos pertencem à micropolítica, ou seja, a um âmbito das relações políticas que não se subordina às instituições publicamente reconhecidas, por exemplo, ao Estado. A micropolítica é o campo dos afetos, diz respeito ao modo como os cidadãos se afetam uns aos outros, e exercem seus poderes uns sobre os outros. Trata-se de uma dimensão que coexiste com a dita macropolítica, concernente às instituições políticas conhecidas. A micropolítica está presente, por exemplo, mesmo num partido político. Ou numa sociedade psicanalítica. Ou num coletivo negro. Em verdade, ela é coextensiva a todo corpo social, pois a política é sempre, a um só tempo, macropolítica e micropolítica.
A negligência da micropolítica nos leva a ignorar como se produzem os efeitos macropolíticos: em que condições candidatos de extrema direita chegam a ocupar posições de tanto destaque, como a presidência da República? A negligência da macropolítica, por sua vez, transforma a micropolítica em mera abstração: apenas certas práticas afetivas ou militâncias isoladas, sem conexão entre si, não conseguem ter o alcance concreto necessário no plano das instituições. Os fascismos são definidos pelos mesmos autores (Deleuze e Guattari) como microfascismos, ou seja, como propriamente micropolíticos, ainda que possam se fazer valer na macropolítica, como se deu com o nazismo, que pôs todos os focos microfascistas da sociedade alemã em ressonância e produziu um Estado fascista como seu efeito.
O que caracteriza os microfascismos é a destruição, levada tão longe, que inclui, ao seu termo, a autodestruição: a destruição de si é o coroamento da destruição do outro. O fascismo é, segundo a formulação de Virilio endossada por Deleuze e Guattari, um empreendimento suicidário. Seguindo esta linha, apenas numa sociedade banhada em microfascismos pode-se compreender a ascensão, pelo voto, de um candidato fascista ao poder. E o próprio Estado se tornando fascista ou não, os microfascismos pululam em todo corpo social. A observação de um rapaz gay, dirigindo-se a seu interlocutor de direita que se recusava a ver o risco que ele corria com os resultados eleitorais, é bastante ilustrativa: “eu não preciso que o Presidente me persiga, seus eleitores vão me perseguir”.
Retornando à Psicanálise, pode-se dizer que os microfascismos internos a ela, por mais sutis que sejam, dizem respeito à negação ou limitação de toda e qualquer diferença. A Psicanálise, como qualquer saber ou prática, finda, mesmo a contragosto, por instituir certos modelos: teóricos, de subjetividade, de relações institucionais ou transferenciais etc. E qualquer desvio de modelo se torna alvo dos microfascismos. Em nossas sociedades, nos ambulatórios ou consultórios em que atendemos, não é diferente. Precisamos lutar contra os microfascismos que nos habitam, porque ninguém está imune a eles. Quando falamos em racismo estrutural, por exemplo, é disso que se trata: não é uma ofensa pessoal, mas um alerta político. É necessário combater os microfascismos que existem em nós, nossa negação ao que é diferente. E isso é muito mais difícil do que combater os microfascismos que existem fora de nós. A começar, porque é doloroso enxergar os nossos microfascismos. Aí entra uma das grandes contribuições de Ferenczi: sublinhar a análise do analista como indispensável à prática clínica. Só assim se torna viável suportar essa ferida narcísica, essa imagem feia que aparece no espelho. Não é o outro que é racista, machista, homofóbico, transfóbico etc.; somos nós mesmos que não escapamos desse ódio ao diferente.
Esta é a quarta via de luta política em que nós, psicanalistas, somos convocados a nos engajar. Em que medida nós mesmos contribuímos para perpetuar os microfascismos em nossas instituições, em nossas clínicas públicas ou privadas? O que podemos fazer, em âmbito institucional ou transferencial, para romper com esse contágio microfascista que parece não encontrar freios em nossa sociedade? E como seguir atentos, pois os microfascismos se reinjetam incansavelmente em cada célula da sociedade? É um combate doloroso, que nos exige uma vigilância incansável, e que deve ser recomeçado a cada momento. Nunca nos livramos de maneira definitiva dos microfascismos. Quando menos esperamos, eles mostram sua face mais crua, nos enojam e nos derrotam.À sua maneira, e com uma terminologia inteiramente diferente, Ferenczi percebeu os microfascismos presentes na Psicanálise institucional e em sua própria clínica e, com sua coragem característica, os expôs aos olhos de todos que estivessem aptos a suportar tal visão. Sentiu e fez sentir a tendência a calar, expulsar ou destruir a reputação dos dissidentes, e a mesma tendência a calar ou negar acolhimento a pacientes que não se encaixavam no que se esperava, os “casos difíceis”. Em que medida sua “fé fanática” na Psicanálise era uma recusa onipotente dos limites da prática psicanalítica, em que medida uma convicção política de que o outro, em toda sua diferença, deveria ser acolhido? Por que o enfant terrible insistia em suas experimentações técnicas: não seria uma forma de questionar os modelos, que excluem justamente os que mais precisam? E como retirar os pacientes de sua extrema submissão, de sua aceitação passiva do que o analista lhes impõe, mesmo sem perceber? Como afetar os pacientes de modo a lhes fazer sair de sua posição dócil, que os torna presas tão fáceis dos microfascismos em geral, em sua tendência de se adaptar ao outro, de se subordinar? Como disse Reich, contemporâneo de Ferenczi, em uma formulação ainda atual, as massas desejaram o fascismo, tinham desejo de autoridade. E os nossos pacientes? Escapam disso? Como fazer com que escapem? Não seria também esse o papel da Psicanálise? Sobretudo no contexto político atual?
Mariana de Toledo Barbosa
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